As inovações se combinam com a herança de alguns tesouros e colocam a Espanha no alto do pódio da vitivinicultura internacional

Apesar da existência de videiras na Espanha desde a chegada dos fenícios na região de Andaluzia há cerca de 3 mil anos, a conquista de um espaço mais significativo no âmbito da vitivinicultura de qualidade demorou a se consolidar e tem muito a agradecer aos avanços da enologia moderna. Hoje, as inovações (sejam as que foram introduzidas pela tecnologia, sejam as que reinventam técnicas tradicionais) se combinam com a herança de alguns tesouros, que afirmam a sua natural aptidão para a produção de vinhos e colocam a Espanha no alto do pódio da vitivinicultura internacional. Isso se cristalizou em números: seu vinhedo é o primeiro em superfície plantada e o terceiro mais produtivo (em vinhos) do mundo.

Quais os principais marcos desse desenvolvimento? Após o start advindo da ocupação romana há mais de 2 mil anos, a expansão da economia vinícola sofreu com conflitos religiosos e foi inibida pela difícil troca entre as regiões, devido à própria configuração geográfica espanhola – um mosaico de serras e vales. Na segunda metade do século XIX, a destruição generalizada da Phylloxera vastatrix poupou a Espanha inicialmente e favoreceu a melhor estruturação de seu vinhedo, especialmente na região da Rioja, que atraiu investimentos de negociantes bordaleses atingidos pela praga em território francês. De certo modo, o savoir faire enológico dos franceses estimulou o nascimento de grandes bodegas que ganharam destaque no século XX e serviram de modelo para outras regiões.

De forma mais efetiva, a entrada na União Europeia em 1986 veio dar um impulso ao desenvolvimento espanhol em diversos segmentos, inclusive no de vinhos. Facilidades fiscais e reformas institucionais estimularam o crescimento da economia no setor de vinhos e em campos que promovem o seu consumo, como cultura, turismo e entretenimento. Empreendedores de novas gerações criaram bodegas modelo, com alta tecnologia e arquitetura arrojada, valorizando também a apresentação dos vinhos, o design dos rótulos e a promoção do enoturismo. Essa entrada é importante para renovar um modelo tradicional em que muitos viticultores não fazem o próprio vinho e grandes bodegas concentram a produção, ainda em certa medida existente.

A qualidade dos vinhos hoje se apoia em sistemas de regulamentação bem definidos, que geram credibilidade no consumidor. Vale citar as referências mais precisas das expressões Crianza, Reserva, Gran Reserva – categorias de maturação dos vinhos em barrica e garrafa. Em 2003, consolidou-se a reforma do sistema de denominação de origem pela Ley de la Viña e Vino, substituindo o antigo Estatuto de la Viña, del Vino y los Alcoholes, de 1970. Além do alinhamento entre nomenclaturas próprias e categorias similares válidas para todos os países produtores da União Europeia: Denominación de Origen = DOP (Denominación de Origen Protegida); Viño de la Tierra = IGP (Indicación Geografica Protegida) – foram criadas categorias particulares para abrigar produções de excelência. É o caso da DoCA (Denominación de Origen Calificada), elegível apenas para regiões com mínimo de 10 anos como DO e hoje restrita às regiões da Rioja e Priorat. Foram criadas também as DO Pagos – produções de uma única propriedade em vinhedo com microclima particular, como os Grands Crus franceses.

Mas nada disso seria tão relevante sem os próprios tesouros. A começar pelas cepas autóctones, que ajudam na afirmação da identidade do vinho espanhol. Tempranillo puxa a lista, hoje posicionada como a terceira variedade de uva tinta (para vinhos finos) mais plantada mundialmente. Com muito menor extensão internacional, como as famosas francesas, é na Espanha mesmo que essa cepa faz maravilhas, podendo gerar desde vinhos mais frescos, ricos em aromas de frutos vermelhos a potentes vinhos de guarda, como em Ribera del Duero, Rioja Alta e Toro.

Climas e solos variados, incluindo áreas oceânicas, mediterrâneas e grande porção continental com altitudes de 600 a 1000 metros acima do mar favorecem a adaptação de cepas diferentes e a produção de vinhos com perfis distintos, alguns em processo de construção de uma identidade. Os símbolos de qualidade (Jerez, Rioja, Ribera del Duero, Cava) se revigoram e outros surgem provocando curiosidade. Ali de fato a modernidade se insinua de forma veemente, com uma face easy drinking, outra de pequenos produtores que buscam a autoria de vinhos que expressem o terroir, além daqueles que guardam a soberania clássica do Velho Mundo.

Nos próximos artigos, seguimos com Espanha.

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