É preciso compreender as estatísticas de consumo e entender que o cenário é outro
Nos preparativos para algumas aulas recentes, me debrucei sobre o status do vinho no Brasil, do ponto de vista do consumo e da produção e fiquei otimista. Por isso, compartilho aqui algumas reflexões.
Vivemos um momento expansão e ao mesmo tempo de contenção da vitivinicultura mundial. As tradicionais regiões produtoras, que já se consagraram internacionalmente e que, em tese, poderiam se sentir mais sólidas em seu mercado, têm convivido com um impacto significativo das mudanças climáticas em suas produções, gerando perdas quantitativas e até qualitativas. Isso coincide com um momento em que surgem novas produções, aumentando, portanto, a concorrência mundial neste segmento.
Há ainda uma tendência ao aumento da produção orgânica, que faz todo sentido dentro das urgências ambientais, porém é mais desafiante de ser exercida num contexto de complexidade climática.
O Brasil vive outra realidade: aqui a vitivinicultura pouco significa para a economia, mas o mercado mostra uma leve e persistente expansão. Temos um consumo per capita anual ainda “ridículo” perto de outros países – 2,4 litros/ano contra 23,8 l/ano da Argentina e 14,3 l/ano do Chile. Mas esses dados não expressam qualitativamente o que se encontra em suas entrelinhas. Somos um país extenso, com uma grande população, e a estatística per capita tende a se diluir, tendo em vista a amplitude dos dados. Elas não expressam o volume do que é consumido nem o perfil deste consumo.
Tomemos como exemplo Portugal, país que tem a mais alta taxa de consumo per capita de vinhos do mundo: 67,1 litros/ano. Considerando a sua cultura ancestral de consumo, a densidade de sua viticultura, a população e o tamanho do território (semelhante ao estado de Santa Catarina), é natural que haja uma grande concentração estatística do consumo, sem muita área de dispersão.
Se contabilizarmos os índices de consumo do sul e sudeste do Brasil, certamente serão bem menores que os dos lusitanos, mas bem maiores do que 2,4 l/ano. Quando consideramos o Brasil todo, ele é enorme, e há áreas com consumo praticamente desprezível. Mas isso não significa que o volume consumido seja pequeno. Segundo a OIV, em 2022, ocupávamos a 33ª posição de consumo per capita, mas a 15ª quando se trata do volume.
Outro aspecto dessa equação a ser considerado é que há uma mudança significativa mundial no tipo de vinho que se consome. O lema é beber menos e melhor e, no caso brasileiro, essa mudança parece mais radical, pois é trocar um vinho feito de uvas americanas, apropriadas para produção de sucos e, tecnicamente, considerado de qualidade inferior, por um vinho que pode ser bem mais caro. Então, o custo monetário da mudança é alto, ocasionando possivelmente uma redução do volume em prol do consumo de um vinho mais caro e melhor. Assim, apesar de as taxas de consumo per capita não expressarem aumento expressivo em relação ao passado, elas não representam o mesmo cenário de consumo.
Em 20 anos, muita coisa mudou no mercado de vinhos brasileiro
Em pouco mais de 20 anos, muita coisa mudou por aqui. Hoje o vinho está nas prateleiras de todos os supermercados, há mais de 700 importadores de vinhos ativos no Brasil, quando você poderia contar nos dedos este número no final dos anos 1990. Fala-se de vinho por todos os lados, cursos, confrarias, páginas das redes sociais. E o potencial de crescimento é enorme, pois, apesar dos nossos problemas econômicos, eles parecem estar mais relacionados à distribuição de renda do que à falta de poder aquisitivo para comprar vinhos. Afinal, o consumo de vinhos passa muito pela elite, que tem muito dinheiro no Brasil sim.
Considerando o aspecto produtivo, a despeito dos altos impostos e configurações climáticas naturalmente mais complicadas para esse segmento, o cenário também parece positivo.
Há uma crescente maturidade de nossa produção. Enfrentamos problemas climáticos desde cedo, que vêm sendo contornados com o auxílio da enologia moderna, mas também fruto de uma fecunda aliança entre produtores, institutos de pesquisa agrícola e cientistas. Isso vem gerando um conhecimento transformador que pode, inclusive, servir de modelo para regiões que só agora enfrentam questões similares.
Alguns projetos, a despeito dos desafios climáticos, começaram orientados por uma bagagem produtiva consistente, rodeados de muitos cuidados e agora colhem resultados qualitativos muito significativos. Falo de produções fora do eixo tradicional do Rio Grande do Sul, como Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Pernambuco, mais recentemente, Rio de Janeiro e por aí vai. Tem muito vinho bom sendo feito por aqui.
A minha preocupação passa mais pela capacidade de o mercado se comunicar com o consumidor, não apenas para vender vinhos, mas para falar do seu vinho e, ainda, pela distribuição. No próximo artigo, concluo esses argumentos, aproveitando para passar sugestões de vinhos brasileiros para acompanhamento das comidinhas da Semana Santa.