Da trégua pandêmica na enogastronomia ao inevitável desafio ambiental.

Após este longo e sofrido período de confinamento mundial, voltei a viajar pelas regiões vitivinícolas da França e identifiquei certo clima de tranquilidade no entretenimento enogastronômico em relação à Covid-19. Suponho que isso se deva, em parte, às medidas preventivas já incorporadas em seu cotidiano, como a exigência incondicional da apresentação do certificado de dupla vacinação para acesso a bares, restaurantes e outros.

Junto às vinícolas, outra preocupação roubou a cena, ou seja, o desafio de contornar uma das piores safras dos últimos tempos. A produção vitivinícola, sendo uma atividade de base agroalimentar, depende muito do clima e, em se tratando de uvas viníferas, elas dependem de uma combinação de fatores ao longo das estações. Passei pela região de produção do Champanhe, pela Borgonha, pelo Jura e pelo Languedoc e me impressionei com a generalização nacional do problema da safra de 2021. Algumas regiões são classicamente mais sensíveis, outras nem tanto, mas 2021 foi democraticamente impiedoso.

De modo geral, alguns períodos do ano são mais delicados para a produção vitivinícola, como o início da primavera, quando se dá a brotação da planta que, em regiões mais frias, sujeitas a geadas, podem ser inibidas, especialmente em cepas de brotação precoce. Em seguida, a floração às vezes é impactada por chuvas em excesso, que podem impedir a fecundação das flores e o crescimento dos frutos. Ainda assim, o verão pode compensar, trazendo uma estação seca, que permita a boa maturação das uvas e colabore com a qualidade.

Em 2021, nada ajudou muito e pouco se sabe ainda sobre a qualidade do que restou da produção. Uma combinação de fatores, que começou com a antecipação da brotação – advinda de inesperados dias mais quentes no final do inverno – e sua posterior interrupção por geadas altamente destrutivas. A perda quantitativa já estava declarada e, como se não bastasse, o período da maturação das uvas foi completamente comprometido com muitas chuvas, que trouxeram doenças fúngicas (míldio, botrytis). A colheita chegou a 25% do usual em algumas áreas.

Na Europa, a safra foi ruim também em outros países, mas parece ter trazido mais perdas para a França e isso já impactou a estatística. A França por muito tempo foi líder da produção mundial de vinhos, embora seguida de perto pela Itália que, nos últimos anos, a ultrapassou. Em 2021, os números franceses já prenunciam que o país cairá para o terceiro lugar, após a Espanha.

Numa semana em que o tema central são os comprometimentos ambientais do planeta, é importante dizer que essa preocupação já ronda o meio científico da enologia europeia há mais de uma década, tendo eu já participado de um congresso sobre o tema em Bordeaux, em 2012. Adaptações pontuais já estão sendo tomadas, como a experimentação de novas cepas. A própria escalada das produções orgânicas resulta de um olhar diferenciado para a viticultura, já que sua agricultura convencional compromete a longevidade dos solos. Nessas visitas, pude perceber que a pauta sobre a redução da emissão de carbono já está presente no discurso de alguns produtores.

Enquanto a França amarga os efeitos nefastos do clima para a viticultura, não podemos dizer o mesmo para o Brasil que, pelo contrário, celebra mais um ano favorável à produção de vinhos. O clima sempre foi um desafio para a boa maturação e estado sanitário das uvas viníferas em nosso país; no entanto, as safras de 2020 e 2021 surpreenderam positivamente, mas isso é tema para outro artigo.

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