Naquele momento, o meu medo passou a ser outro – o de não conseguir retornar ao Brasil.
Impossível não me reportar ao coronavírus mesmo numa coluna de vinhos, afinal todos os campos da sociedade estão de certo modo afetados pela pandemia em curso que, em tempos de globalização, se dissemina com muita rapidez. Assim, sentada à frente do computador no meu apartamento em que estou reclusa há três dias, resolvi fazer uma espécie de relato do que se passou nos últimos dias na minha tentativa mais ou menos bem-sucedida de visitar a vitivinicultura do Uruguai.
Desde o final do ano, planejei voltar ao Uruguai – que visitei em 2013 – aproveitando uma promoção de troca de milhas da Latam. Apesar do curto período que eu programei para me ausentar, entrei em contato com alguns produtores, o suficiente para ter uma rica agenda de visitas por quatro dias. O meu embarque estava marcado para 13 de março e, poucos dias antes, a chegada do vírus no Brasil começava a provocar impactos. Cogitei a mudança de planos, mas consultei a Latam e o hotel sobre a possibilidade de remarcação, e a sinalização era negativa. Então, arrisquei ir.
O Uruguai encontra-se em pleno momento de colheita e havia festas da vindima programadas, algumas mais culturais, como parte da tradição, algumas planejadas pelo enoturismo. Interessava-me rever o Uruguai e constatar o desenvolvimento de sua vitivinicultura ao longo desses anos in loco, bem como perceber os resultados da última safra. No dia em que cheguei, já mais tarde, eu ainda estava excitada com a possibilidade de ter uma curta viagem bem cheia de atrações. Iniciei minha temporada indo a um bar de vinhos próximo ao hotel, chamado Wine Experience, para degustar algumas taças e gostei.
Bebi uma taça de vinho da variedade Albariño (da Bodega Cerro del Toro), uva típica da Galícia, que tem sido muito vinificada no Uruguai. Fresco e aromático, foi uma ótima pedida para começar. Em seguida, pedi ao dono do wine bar, que parecia bem conhecedor, que me indicasse um vinho tinto que não fosse da Tannat. Ele me trouxe um Merlot da vinícola Alto de la Balena, já visitada por mim anteriormente, e este estava uma pérola. Finalmente, a terceira taça deveria ser de Tannat, e eu pedi que ele escolhesse um Tannat bom e mais pronto para o consumo, pois muitos demoram a perder a agressividade dos taninos. Muito bom também e foi produzido pela sua família, que, a cada ano, escolhe uma vinícola para a concessão de uvas e vinificação do próprio vinho. Este era da Bodega Artesana e nem tinha rótulo – caseiro mesmo.
Para acompanhar essas taças, pedi bruschettas e uma tábua de queijos, embutidos, pães e azeite caseiros, com os quais me deleitei. Vinda de uma agenda cheia de compromissos desde o início do ano, eu estava bem cansada e acordei no dia seguinte com um pouco de dor de cabeça e cólicas intestinais, em função dos ingredientes gordos, que não estão muito presentes na minha dieta. Foi nesse momento que eu me dei conta do risco de infecção com a Covid-19. Entrei em pânico e procurei saber se problemas intestinais podiam ser sintomas do vírus.
Comecei a imaginar como seria o meu atendimento se eu estivesse infectada e cheguei a ligar para o meu seguro de viagem, tendo sido informada de que se o atendimento fosse em decorrência do coronavírus, a seguradora não arcaria com nada, nem com o tratamento dos sintomas iniciais, já que no contrato consta que as seguradoras estão desobrigadas de custos relacionados a pandemias. Fiquei apavorada e, após alguns contatos no Brasil, percebi que eu estava amedrontada sem motivo. Como isso é duro, pensei. Importa mais a manutenção dos negócios do que a solidariedade humanitária. Pensei em quantas pessoas morrem por não serem assistidas, quando a defesa da saúde deveria ser prioritária e realmente precisa de um sistema estatal forte para garantir cuidados à população.
Aos poucos, fui recebendo mensagens de que as vinícolas estavam fechadas à visitação, bem como as festas da vindima, que reuniriam muitas pessoas, pois o vírus acabara de chegar ao Uruguai, com quatro casos confirmados. Atitude correta – azar meu. Consegui visitar a Pizzorno Family Estates, na qual já tinha estado em 2013 e fui muito bem recebida pelo proprietário Carlos Pizzorno. Enquanto conversávamos, um grupo de brasileiros de São Paulo era recebido pelo seu filho e comentavam que suas visitas também foram canceladas.
Naquele momento, o meu medo passou a ser outro – o de não conseguir retornar ao Brasil, uma vez constatado que tudo estava mudando muito rápido. Acessei o site da Latam e fiquei sabendo que, como eu havia comprado a passagem com milhas, eu não poderia antecipar o voo diretamente no site, teria que ser por chat. Tentei, havia 300 na minha frente, passei duas horas e nada. Tentei umas cinco vezes, e o lugar na fila só aumentava – o último era 598.
Felizmente, no dia do meu retorno, duas vinícolas me receberam – a Bodega De Lucca e a Pisano Artesania en Vinos Finos. Poucas visitas, mas valiosas! Marquei com a locadora de carro mais cedo no aeroporto para tentar antecipar o meu voo, que sairia de madrugada, e encontrei uma fila gigante de pessoas de máscaras nos rostos e álcool gel na mão, angustiadas para chegarem aos seus destinos. Consegui antecipar, quase na hora de o voo decolar – creio que tenha ajudado o fato de eu estar numa categoria de prioridade na cia. aérea, já que viajo muito. Trouxe bons vinhos na bagagem e contarei mais do que conversei, vi e experimentei em termos de vinhos do Uruguai no próximo artigo, pois não poderia deixar de relatar parte deste cenário inusitado e apavorador daquilo que estamos vivendo.
Para participar dos cursos de vinhos ministrados por Míriam Aguiar: Instagram: @miriamaguiar.vinhos, site miriamaguiar.com.br e e-mail maguiarvinhos@gmail.com