Símbolo e produto e tudo o mais que está associado a ambos se fundem.
Como no último artigo, falamos sobre a praga da Phyloxera vastatrix no mundo do vinho fino (feito de uvas viníferas), fazendo certas analogias com o momento atual, decidi continuar com um tema importante, em parte também relacionado com os impactos desta praga em algumas regiões. Vou falar sobre a criação das Denominações de Origem, especialmente presentes no mercado agroalimentar como um sinalizador de qualidade, embora ainda pouco compreendido pelo consumidor brasileiro.
Como eu disse no último artigo, a Filoxera chegou num momento de glória para algumas regiões produtoras que abasteciam o mercado de alta qualidade. Nas primeiras décadas do século XX, o cenário era outro, com evidentes impactos impostos pela devastação dos vinhedos, dentre eles, um fenômeno, recorrente no mundo do vinho, impulsionado pela escassez de alguns produtos: a falsificação de vinhos.
Essa prática oportunista sempre ocorreu e acabou contribuindo para a criação de instrumentos de regulamentação e proteção da qualidade dos vinhos. Assim nasceu o sistema francês de Appellation d’Origine Contrôllée (AOC), inaugurado pelo mundo do vinho e, posteriormente, estendido aos demais campos agroalimentares franceses, bem como hoje adotado em grande parte da União Europeia e em processo de implementação mundial. Na verdade, o sistema francês aprimorou o modelo da primeira demarcação de produção regional, sancionada no Douro, Portugal, pelo Marquês de Pombal em 1756, para proteger os vinhos do Porto. O conceito que fundamenta os sistemas de D.O.s é chamado de Indicações Geográficas.
Trata-se de um sistema que legitima e institucionaliza certo tipo de produção como uma prática cultural vinculada a uma origem. A partir de um levantamento de um grande número de elementos que caracterizam aquela produção (limites geográficos, aspectos geológicos, matéria prima, métodos de produção e perfil organoléptico), são criados os Regulamentos de Uso, que servem de referência para a validação coletiva e reconhecimento dos vinhos como sendo representativos de uma Denominação de Origem. Apesar de servir como um instrumento de promoção do produto, que lhe confere mais importância e credibilidade no mercado, inclusive para praticar preços superiores, o signo da D.O., simbolicamente falando, faz um caminho de certo modo oposto ao das marcas.
As marcas mercadológicas, registradas como identidades visuais e simbólicas das empresas, produtos, serviços e instituições, buscam sintetizar uma proposta comercial pela associação de valores a uma imagem, um símbolo. Desde que não exista um registro similar, você pode dar nome de algum lugar para uma empresa que nada tenha a ver com este nome no passado e simplesmente fazer um trabalho de comunicação, de modo a construir no imaginário do público a relação entre o nome e o que a empresa faz.
Já o trabalho de associação que se constrói pelas Denominações de Origem parte de uma relação preexistente entre um produto já reconhecido como típico de uma região, sem que isso estivesse institucionalizado, e, a partir desse momento, ele incorpora o símbolo da região como parte de si mesmo. O nome da Denominação de Origem toma de empréstimo o nome da região, cidade ou vilarejo no qual ele é feito. E é aí que se configura uma fundação mais legítima do produto – já que ele carrega um nome que deve ser referendado pela tradição, herança cultural e território de origem. Não que isso impeça os atos falsificadores, mas ele dificulta essa empreitada.
Símbolo e produto e tudo o mais que está associado a ambos se fundem. Bordeaux não é só uma cidade, bem como o seu vinho nunca poderá ser de outro lugar, mesmo que seja feito com as mesmas uvas, mesmo corte e apresentando características sensoriais semelhantes. Este é um tema complexo e polêmico, até porque o que o conceito sugere nem sempre é praticado. No próximo artigo, vou falar das diferenças entre modelos de indicações geográficas implementados em diferentes países, o vetor inflacionário de algumas D.O.s, bem como sobre as resistências ao uso desses signos portadores de identidade, mas em certa medida muito conservadores para as inovações do mercado.
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