Não é uma Filoxera, mas também vem atingindo o mercado de vinhos indiretamente
Seguimos com o tema do coronavírus, já que todos estão de algum modo atravessados pela pandemia, em sua severidade e rápida difusão mundial. A sociedade global rapidamente espalha produtos, informação, modas, personagens, experiências, mas também doenças, boatos, patologias e preconceitos.
Se fizermos uma analogia entre uvas e pessoas, a Covid-19 nos remete a um fenômeno importante na história do vinho: a praga da Filoxera, uma doença que acometeu vinhedos do mundo inteiro nas últimas décadas do século XIX, provocando muitos prejuízos ao setor vitivinícola. A Phylloxera vastatrix é um pulgão minúsculo (quase invisível a olho nu) que depende das uvas para estabelecer seu ciclo de reprodução, podendo se manifestar sob formas galícolas (pelos galhos), radícolas (raízes) e aladas.
As Vitis viniferas são especialmente sensíveis às manifestações radícolas (fase adulta), cujos insetos sugam as raízes em milhares de pontos, causando rachaduras e deterioração da planta. Descobriu-se que ela veio à tona porque famílias de uvas norte-americanas eram portadoras resistentes às ações do inseto e o transmitiram às nobres uvas viníferas quando plantadas em território europeu.
A praga se espalhou pouco a pouco por diferentes países e só depois de alguns anos é que o problema foi contornado pela enxertia de ramos de Vitis viniferas em raízes de uvas americanas, método denominado “cavalo”. Antes disso, muito se especulou a respeito da origem do problema, além da tentativa de uso de métodos de combate ortodoxos e inusitados. A primeira identificação da Filoxera ocorreu na Europa em 1863 e, a partir desta década, ela começou sua infestação na França, Portugal, Suíça, Ilha da Madeira, Califórnia, Alemanha, Áustria, Espanha, Itália e, no final do século XIX, ela já havia atingido países da África, América do Sul, Ásia e Oceania. Até que se prove o contrário, só o Chile – que conta com um perfil geográfico que ajuda na imunização do seu território contra pragas agrícolas – teria resistido à sua ação, além de regiões com solos arenosos, como Colares, em Portugal, bem como alguns vinhedos com terrenos vulcânicos da Sicília.
A praga da Phyloxera vastatrix é um marco na história do vinho (que já convive com doenças significativas), pelo estrago que fez e pela rápida proliferação do inseto, sem dar tempo para reações num período em que a vitivinicultura estava próspera e tinha enorme peso econômico para alguns países. Vinhedos devastados por um inimigo desconhecido comprometeram a produção de muitos anos, inibiram o mercado de vinhos de qualidade e abriram campo para falsificações. O mundo do vinho custou a se recuperar do evento, e algumas variedades de uva simplesmente desapareceram do mapa.
Qualquer semelhança com o coronavírus é mera coincidência, mas faz parte dos riscos aos quais todo o ecossistema está exposto. A Covid-19 acomete e, infelizmente, mata um crescente número de pessoas, além de causar danos de toda ordem, não apenas à saúde, mas nas esferas psicossociais, políticas, econômicas, entre outros. Os prejuízos são imediatos e a prazos que só o tempo nos dirá. Não é uma Filoxera, mas também vem atingindo o mercado de vinhos indiretamente.
Pesquisei informações, notícias de várias regiões produtoras e consumidoras de vinhos para saber o impacto das circunstâncias nas quais nos encontramos hoje em decorrência da pandemia. No processo de produção, a pandemia ocorre em períodos distintos para os hemisférios norte e sul. No hemisfério norte, onde se encontram os vinhedos europeus, a pandemia provocou um isolamento social já nas primeiras semanas de março e pelo que tudo indica deve avançar até maio. Nesses períodos, passado o rigor do inverno, o sol começa a aparecer de forma mais significativa, impulsionando a atividade vegetativa das videiras, que começa pela brotação (março/abril) e segue com a floração (maio/junho) que vai dar origem aos frutos. Enquanto isso, dentro das vinícolas os vinhos de outras safras estão sendo preparados ou prontos para a comercialização. O trabalho continua sendo realizado, mas, diante das restrições do momento, há uma sobrecarga para alguns e maior demanda de mecanização do processo.
Já no hemisfério sul, a pandemia atingiu em cheio o período de colheitas e o início das atividades produtivas das vinícolas, a exemplo do que relatei do Uruguai nos dois últimos artigos. A necessidade de isolamento social restringe o uso da mão de obra temporária para grandes produções, muitas vezes demandada para que a colheita seja realizada no melhor momento e de forma rápida.
A tensão se dá especialmente na comercialização, limitada pela dificuldade de transporte dos vinhos, seja das vinícolas para os fornecedores, seja deles para os consumidores. O varejo da hospitalidade (restaurantes, bares, hotéis), que reúne importantes clientes dos fornecedores de vinhos, encontra-se de portas fechadas. Distribuidores que não trabalham diretamente com consumidores finais se encontram com poucos clientes e devem buscar alternativas. A comunicação digital e o e-commerce nunca estiveram tão valorizados – quem não praticava é obrigado a fazê-lo, mas enfrenta barreiras no próprio poder de compra dos consumidores, apartados de suas fontes de rendas. Isso sem contar a necessidade de repassar a desvalorização do real em relação ao dólar, moeda que normalmente regula o comércio dos vinhos importados.
A Covid-19 se tornará um fantasma do passado, assim como a praga da Filoxera foi para a vitivinicultura, que hoje já se previne da doença. Apesar dos pesares, precisamos ficar em casa para nos mantermos vivos e aptos a contar essa história.
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