A exuberância da Malbec surpreendeu e encantou os norte-americanos, como já havia acontecido com os brasileiros.

O filme O Boom varietal: o crescimento da Malbec argentina nos EUA, realizado por Sky Pinnick, foi um longa-metragem premiado no Oenovideo de 2013, um festival anual totalmente devotado a imagens em fotografia e vídeo sobre o mundo do vinho, criado na França e com sedes itinerantes desde 1994. Talvez soe estranho para um brasileiro pensar que existem produções sobre este tema suficientes para uma competição anual, mas há países para os quais o vinho tem importância econômica e cultural significativas a fim de sustentar uma série de atividades paralelas que dialogam com este universo, pleno de histórias e simbolismos.

O filme tratava do êxito dos vinhos argentinos da varietal Malbec que chegavam ao mercado norte-americano, provocando curiosidade acerca de uma cepa francesa ofuscada pelas suas companheiras de corte bordalês – ou seja, a Malbec frequentemente participa em doses mínimas do blend dos vinhos tintos de Bordeaux, que têm como protagonistas a Cabernet Sauvignon, a Merlot e a Cabernet Franc.

A exuberância em vários sentidos (cor, aroma, volume e paladar) dessa casta na versão argentina surpreendeu e encantou os norte-americanos, dentre outros, assim como já havia se dado no mercado brasileiro, em que este vinho tem significativa importância. A Malbec é uma variedade originária do sudoeste da França, mais especificamente da Denominação de Origem Cachos – região abaixo de Bordeaux e mais ao centro-sul – onde a casta não aparece como coadjuvante, pelo contrário, assina vinhos varietais.

Seja pelo seu papel secundário em Bordeaux, onde seus vinhedos foram sacrificados pela praga filoxera, ou por um desempenho qualitativo irregular em Cahors, onde os vinhos são mais adstringentes e não imediatamente tão afáveis como os argentinos, o fato é que o tinto da Malbec argentina brilhou e chega a despertar curiosidade sobre esta casta em sua região de origem. Prova disso é que a Bodega Fabre-Montmayou, de propriedade francesa em Mendoza desde 1992, adquiriu recentemente terras na região de Cahors para incluir em seu portfólio Malbecs franceses.

Acabo de voltar de Mendoza e percebo que, a cada temporada, desde a reconfiguração de sua produção centenária nos anos 1990, até os nossos dias, muita coisa vem acontecendo em solo argentino: no direcionamento de sua produção, no consumo interno de vinhos pelos argentinos e outros países, na descoberta de outros terroirs que podem dar mais elegância aos vinhos etc. Mas uma coisa é certa – a Malbec continua reinando absoluta como cepa de destaque nas produções de praticamente todas as bodegas. Como diz a reconhecida crítica de vinhos argentinos Elisabeth Checa, esta é a casta que posiciona os vinhos argentinos no mundo, uma vez que neste solo ela desenvolve toda sua grandeza em termos de corpo, acidez e potencial de envelhecimento. Especialmente em partes mais altas, com grande amplitude térmica, como no Valle de Uco, a Malbec mostra todo o seu esplendor.

A pesquisa por novos territórios para experiências com a Malbec e outras variedades tem tido lugar, embora a uva emblemática predomine, seguida da Cabernet Sauvignon, também muito plantada e utilizada como vinho varietal ou como corte com a Malbec. A Argentina tem um perfil curioso, que de certo modo destoa dos outros países latinos – a cultura de consumo do vinho esteve muito presente já na metade do século XX, quando suas taxas de consumo alcançavam algo próximo de 90l per capita! Ela se assemelhava a países europeus de ampla tradição vitivinícola. Se olharmos a arquitetura de Buenos Aires, seus cafés e hábitos de consumo, dá para se ter uma ideia de que a cultura europeia teve grande influência na capital portenha, especialmente nos períodos de glória econômica. Não podemos dizer, entretanto, que a qualidade do vinho acompanhasse o perfil europeu. O consumo era alto, mas o nível de qualidade era outro, e os preços dos produtos, também.

Seguindo o perfil dos países do Novo Mundo, a Argentina reinventou sua vitivinicultura para produzir vinhos de melhor qualidade a fim de competir com aqueles que pertencem ao cardápio gourmet contemporâneo. Paralelamente a isso, a perda de poder aquisitivo do cidadão argentino fez com que o vinho bom ficasse mais caro e menos presente em suas mesas em termos de quantidade. Hoje a Argentina tem uma taxa em torno de 30l per capita –1/3 da taxa que vigorava nos anos 1970 – mas certamente o valor arrecadado por litro de vinho é bem mais alto em função do salto de qualidade e da orientação dos vinhos de alta gama ao mercado externo.

Boa parte das vinícolas estreladas exporta mais de 75% de sua produção para vários países, como EUA e Brasil, grandes consumidores de seus vinhos. Esse vigor produtivo pode ser percebido nas transformações da paisagem de Mendoza, com impacto na cidade e no seu entorno, uma vez que recebe um forte enoturismo, muitos investimentos estrangeiros em seu território (moeda mais fraca se torna um grande atrativo para aquisições enológicas) e um trânsito frequente do alto business gastronômico. O desenho impecável das fileiras de videiras tomadas por cachos de uvas, que povoam a grande região de Mendoza, a arquitetura glamourosa das bodegas, restaurantes com chefs estrelados enriquecem o verão de uma região de rara beleza, ao pé dos Andes e cheias de caminhos a descobrir.

A seguir, falarei das produções atuais de vinhos argentinos, suas qualidades e características, bem como das atrações enoturísticas e gastronômicas da região de Mendoza.

Para saber mais sobre cursos de vinhos e outros projetos: www.miriamaguiar.com.br

Deixe um comentário