Ali a Tannat consegue resistir à umidade e alcançar sua melhor maturação sem dificuldades.

Após compartilhar a experiência da minha curta viagem ao Uruguai, diante do pânico do coronavírus, agora é a vez de falar um pouco sobre o que pude perceber e apreciar nesta passagem. O Uruguai fica logo ao sul do Brasil, fazendo fronteira com o Rio Grande do Sul e, contrariamente ao nosso gigantesco continente, é o segundo menor país da América Latina, com uma população de cerca de 3,5 milhões de habitantes, pouco mais do que temos em algumas capitais brasileiras. Sua posição está na faixa latitudinal considerada a mais apropriada para a produção de vinhos – entre os paralelos entre 30º e 35º Sul –, alinhado com regiões produtivas do Chile e da Argentina, mas com perfil mais temperado, em função da grande presença de águas em seu entorno: Bacia Platina e Oceano Atlântico.

Existe cultivo vitivinícola em 15 dos 19 departamentos do país, mas boa parte das vinícolas mais expressivas se encontram nestas cinco regiões: Canelones, Montevideo, Colônia, Maldonado e San José. Todas ao sul, próximas à costa, tendo em sua ponta oeste a histórica cidade Colonia de Sacramento e a leste o badalado balneário Punta del Leste. A vinicultura remonta a meados do século XVII, introduzida pelos colonizadores espanhóis, mas foi no século XIX, após sua independência, que a atividade evoluiu, especialmente após a introdução de mudas da cepa Tannat pelo imigrante basco Don Pascual Harriague. A variedade se adaptou muito bem à região e se tornou um diferencial qualitativo para a produção de vinhos uruguaia, uma vez que a Tannat, em sua origem, mais precisamente na região de Madiran, França, era associada a vinhos duros, muito tânicos, diferentemente das versões uruguaias.

Por que Tannat? O clima uruguaio é marcadamente úmido, em função da influência marítima, e isso pode dificultar bastante a adaptação de algumas cepas, seja pela perda de qualidade, resultante do alto rendimento que o clima mais úmido provoca, seja pela maior vulnerabilidade a doenças. Cepas que requerem estações quentes e secas longas para amadurecimento podem sofrer com a insolação insuficiente, gerando vinhos herbáceos e de baixa concentração. No entanto, ali a Tannat consegue resistir à umidade e alcançar sua melhor maturação sem dificuldades, como revela Carlos Pizzorno, proprietário da Pizzorno Family Estates: “É uma cepa que consegue sobreviver bem ao clima úmido do Uruguai; ela resiste bem às chuvas e, se há um controle do rendimento, ela consegue trazer boa qualidade. A Malbec, por exemplo, tem bagos grandes e em clima chuvoso fica muito produtiva e pouco concentrada. É necessário às vezes desidratá-la por uma semana, para concentrar sabor.”

Reinaldo de Lucca, um dos mais respeitados enólogos uruguaios, proprietário da Bodega de Lucca, em Canelones, ressalta que a adaptação exemplar se dá na parte meridional do país: “Tannat de Madiran dá um vinho mais duro, por causa do clima. No Sul do Uruguai é mais quente, mas há um vento sudeste que favorece o seu amadurecimento lento, além da alta luminosidade de Canelones – quanto mais se aproxima do Equador, menor a luminosidade. As regiões do norte uruguaio fazem bons tannats, mas é difícil fazer um vinho de guarda, porque o clima é mais quente e menos temperado – o vinho é para consumo mais jovem.”

Interessava-me também saber sobre o que eles vêm fazendo além do Tannat. Já em visita anterior, pude verificar uma boa adaptação de uvas brancas ao país, bem justificado pelo clima temperado. Não é o mais usual, mas há investimentos nesse sentido, especialmente em vinhos varietais da Sauvignon Blanc, da Albariño, (que estão na moda neste momento), da Viognier e da Chardonnay. O Sauvignon Blanc da Pizzorno já era muito bom quando a visitei em 2013. A Bodega De Lucca faz um vinho muito interessante e gastronômico da uva Marsanne, raramente vinificada fora do Vale do Rhône, na França. E a Pisano Artesania en Viños, que também pude revisitar, me apresentou um Torrontés que deixa muitos argentinos para trás. A cepa chegou à sua bodega em 1980, trazida da região argentina de La Rioja.

Em relação aos tintos, gostei especialmente dos vinhos de corte bordalês da Pizzorno, me surpreendi com um delicioso Pinot Noir da Pisano, bem como com a justa elegância e concentração dos seus Tannats de várias categorias, que pude degustar em companhia do proprietário, Daniel Pisano. O Merlot da Bodega Alto de la Ballena é certamente um dos vinhos de melhor preço/qualidade do Uruguai, uva que assina também um grande vinho da Bracco Bosca, o Gran Ombú Merlot. Estive na Bodega De Lucca, e eles me receberam, a despeito de estarem ocupados em plena vindima. Trouxe na mala o Aglianico De Lucca, variedade do sul da Itália produzida por esta vinícola familiar, além da siciliana Nero d’Avola e de outras castas francesas. Este ano, eles vão lançar também um Tannat sem sulfito, feito com leveduras indígenas.

De modo geral, há uma presença crescente das uvas bordalesas no mercado – Merlot, Cabernet Franc e Petit Verdot – além da onipresente Tannat. Grande expectativa pela safra de 2020! Segundo Carlos Pizzorno, esta é a melhor safra em 40 anos, pois pouco choveu, e as uvas alcançam suas maturidades com 100% de sanidade. Até uvas que têm dificuldade de chegar à cantina sem toques herbáceos, como a Cabernet Sauvignon, prometem vinhos gulosos em 2020.

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