Se o vinho já era honrado, após Cristo ele ganha um status muito privilegiado. As relações entre vinho e religião

A aliança do vinho com a religiosidade esteve presente por muito tempo nos rituais em homenagem aos deuses Dionísio ou Baco das mitologias grega e romana, respectivamente. Embora estas tenham sido sucedidas por outras doutrinas, até hoje, há encontros festivos e homenagem ao deus do vinho nas regiões da antiga Trácia (Grécia e Bulgária).

Junto à comunidade judaica, o vinho também era considerado uma boa bebida, de caráter elevado, deste que consumida com moderação. A embriaguez excessiva foi fortemente desaprovada e condenada pela tradição bíblica, mas o vinho estava integrado à vida cotidiana. No contexto em que cresceu Jesus Cristo, o cidadão médio privilegiado da Judeia bebia cerca de 1 litro de vinho por dia. A bebida foi tema recorrente das passagens bíblicas, como no primeiro milagre de Jesus (narrado no Evangelho de João), em que seis potes de água foram transformados em vinho para salvar uma situação infeliz. Jesus teria se comparado a uma videira e o vinho a seu sangue na Última Ceia.

Garrafa de vinho com taça ao lado
Garrafa de vinho (foto Unsplash)

Se o vinho já era honrado, após Cristo, ele ganha um status muito privilegiado, já que, simbolicamente, se torna uma espécie de elemento catalisador de uma espiritualidade essencial à vida. À luz de Cristo, o vinho assumiu um significado especial para os seus seguidores, estimulando a sua propagação pela Europa, uma região em rápida cristianização. Num certo momento da história europeia, as honras aos deuses mitológicos foram combatidas e substituídas pelas práticas sacramentais cristãs com o vinho, dominando a cena dos impérios romanos orientais e ocidentais. A eucaristia instituiu uma necessidade contínua do vinho para os rituais católicos, estimulando o aumento da produção.

No século 7, entretanto, ocorreu uma ascensão do islamismo. Os exércitos islâmicos, ao longo de um século, foram conquistando o Oriente Médio, o norte da África, a Península Ibérica e parte da Ásia. Na visão do profeta Maomé, no paraíso, os rios fluem com este líquido delicioso, mas não se podia confiar que os humanos na terra o bebessem sem abuso. Os homens cairiam em tentação e não saberiam consumir o vinho com moderação. Era necessário proibir. Assim, nos locais onde dominou e domina o islamismo, a produção e consumo de vinhos estagnou.

Ao longo da Idade Média, houve muitas divisões entre as doutrinas cristãs. A vertente do catolicismo, muito associada à raiz romana e à cultura latina, manteve uma profunda conexão com o vinho, tão mais forte quanto mais a Igreja enriqueceu, estabeleceu alianças políticas e pôde desenvolver em suas propriedades uma vitivinicultura de excelência. Alguns núcleos de produção desenvolvidos pelas ordens monásticas católicas são até hoje considerados os mais célebres embriões da enologia.

Em outras vertentes cristãs, como as de matriz protestante, há uma leitura mais restritiva quanto ao consumo de bebidas alcoólicas no geral, e o vinho não teria um lugar especial preservado para si. Elas permearam contextos que deram origem a políticas de proibição ao álcool, como a Lei Seca, nos EUA, ligadas aos movimentos de temperança. Tal movimento se difundiu especialmente nos países de língua anglo-saxã, entre as primeiras décadas do século 19 e do século 20, visando à moderação ao consumo de bebidas alcoólicas.

Vinho e religião – Parte I

Míriam Aguiar

Nas comunidades judaicas, o vinho continua com sua vocação espiritual e está integrado em seus rituais sagrados e cerimoniais (kidush, seder de pessach, havdalá). Por outro lado, o judaísmo reconhece os perigos de intoxicação e, como o vinho está relacionado a cerimônias espirituais, o vinho a ser consumido é o kosher. Em linhas gerais, o vinho kosher busca ser um vinho mais limpo e puro. Para tanto, deve ser totalmente supervisionado por judeus estritamente observantes do shabat, que não podem usar quaisquer ingredientes que afetem a “pureza” do produto.

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