Expressividade do solo está na filosofia dos bons vinhos franceses, mas região vem se beneficiando da renovação enológica ‘novo-mundista’.
Talvez se não estivéssemos na América Latina, fizesse menos sentido a história da produção de vinhos de uma região no vale do Rio Lot, sudoeste da França, cujo vinho emblemático era feito da uva Auxerrois e apelidado de Vin Noir (vinho negro). No centro dessa região, está a cidade de Cahors, capital do Departamento do Lot, ex-Província de Quercy, construída no séc. XIV, com monumentos que atestam seu rico passado histórico, dentre eles, a ponte fortificada Pont Valentré, tombada como patrimônio histórico mundial pela Unesco.
A cidade de Cahors empresta o nome à Denominação de Origem do vinho francês da uva Malbec, localmente mais chamada de Auxerrois e Cot. A região também é rica em tipicidades gastronômicas, dentre as quais estão o Cordeiro de Quercy, o queijo de cabra de Rocamadour, s confits de canard (e outras iguarias do pato), foie gras, trufa negra e nozes de Périgord.
Além da protagonista Malbec, da qual se exige a mínima utilização de 70% para o direito à rotulagem como AOC Cahors, são permitidas as cepas Tannat e Merlot nos cortes, a primeira mais afinada com a robustez do vinho de outrora e predominante em outra AOC do Sudoeste francês, o Madiran, e a segunda, cada vez mais utilizada para amaciar os cortes dos vinhos modernos. Cahors está a cerca de 250km de Bordeaux e, no passado, já gozou de status semelhante aos vinhos bordaleses, com amplo acesso ao mercado inglês. Após a Guerra dos 100 anos, os comerciantes de Bordeaux proibiram a venda de seus vinhos à Inglaterra, assim como fizeram com vinhos de regiões próximas, mas há nítidas semelhanças entre eles, a começar pelas cepas – na prática, a Malbec pode ser utilizada nos cortes bordaleses em reduzida escala.
Outros grandes consumidores do vinho de Cahors foram os russos, e por trás desse fato há uma história curiosa, aparentemente lendária, mas que merece crédito. A época era início do século XVIII, quando comerciantes russos começaram a importar vinhos de Cahors via Oceano Atlântico e mar Báltico. Um nobre entusiasta de vinhos, o Czar Pierre I, passa a consumi-lo assiduamente, quando descobre ser este um precioso medicamento para suas úlceras estomacais. O vinho se populariza e se torna o vinho de missa oficial das igrejas ortodoxas. Um detalhe: o vinho em questão era um vinho doce obtido por cozimento do mosto, com acréscimo de álcool e açúcar, para aguentar as longas viagens até San Petesburgo.
Não sei se esses “acréscimos” contribuíram para a má fama do Vinho Negro de Cahors, mas creio que seja uma composição de fatores: a concentração e adstringência da cepa no terroir francês, o uso de técnicas muito rudimentares que visavam mais a sobrevivência do vinho do que a sua qualidade, a concorrência com regiões de maior peso politico econômico, que muitas vezes contribui para a acomodação do mercado visando o abastecimento de vinhos do dia a dia. Isso já aconteceu com outras regiões do sul da França e várias da Europa. Mas é fato que a técnica de aquecimento de parte das cepas ou dos mostos de uvas era utilizada desde a Idade Média, segundo informação local, e isso certamente contribuía para a alta extração de cor e taninos que tornavam o vinho rústico demais.
A título de resgatar esse símbolo histórico de forma sofisticada, a vinícola Clos Triguedina criou o vinho “The New Black Wine”, produzido a partir de 100% de uvas Malbec que passam uma noite em forno, normalmente usado para produção de ameixas secas. Em seguida, passa-se à vinificação e envelhecimento por 12 meses em barricas de carvalho. O resultado é um vinho riquíssimo, com aromas de frutas negras, especiarias e torrefação, que lembra um grande Porto ou Amarone, com taninos muito aveludados.
Cahors hoje passa por uma visível modernização, que inclui, no âmbito do tradicional vinho tinto, a suavização pelo corte, a adoção de novas técnicas junto aos vinhedos (limitação de volume por ha/ multiplicação das podas visando otimização da maturação) e à vinificação (aparelhamento da cantina para maior precisão dos processos/ uso de barricas novas) e a diversificação do perfil de produção (vinhos para consumo jovem/de diferentes solos/licorosos). O que se atesta muito hoje na região também é a ampliação do portfólio com a inclusão de vinhos de uvas como Viognier, Chenin, Chardonnay, Sauvignon e Sémillon. Neste caso, os rótulos levam a classificação IGP, que dá mais liberdade em relação à constituição dos cortes.
Perguntei a alguns produtores se o destaque da Malbec no hemisfério sul acabou estimulando o reconhecimento da região de origem da cepa, e eles prontamente disseram que sim, embora assegurem a existência das diferenças. A expressão que mais justifica e sintetiza essa avaliação por parte dos franceses é a seguinte: “Malbec du Soil et Malbec du Solei” – ou seja, o Malbec francês é marcado pela influência do SOLO e o argentino do SOL. É fato que a expressividade do solo está na filosofia dos bons vinhos franceses, mas podemos também dizer que a região vem se beneficiando da renovação enológica “novo-mundista”. Há produções que preservam o caráter menos intervencionista e que pedem ao consumidor maior tempo de espera, bem recompensados. Se há semelhança na intensidade da cor e estrutura dos Malbecs das duas nacionalidades, é fato também que cruzamos com mendocinos mais “calientes”, aromáticos e macios na juventude do que o contrário.
Seguem alguns rótulos que me encantaram:
G.C 2015 Chateau Du Cèdre (difícil escolher um vinho mal elaborado por essa vinícola, que é certificada BIO, mas este vinho é absolutamente irretocável)
Extra Libre – Le Cèdre 2016 (sem sulfito)
Probus Clos Triguedina 2008
The New Black Wine Clos Triguedina
Château De Haute Serre Icone Wow 2009
Chenin De Mercuès – Château De Mercuès 2015
Turmas abertas para cursos da Cafa Wine School, de Bordeaux, ministrados por Miriam Aguiar, visite miriamaguiar.com.br / Instagram: @miriamaguiar.vinhos
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